Por que reunir-se em torno do Précis de décomposition – e celebrá-lo? Alguns diriam que não há nada aí a ser celebrado, muito pelo contrário. Cioran: pró e contra… Qual a importância do Breviário de decomposição, conforme o temos, desde 1989, primorosamente traduzido ao português pelo professor José Thomaz Brum? Qual sua importância hoje, para além de um mero gosto pessoal, partilhado talvez por um punhado de leitores? Qual seria o seu valor de facto (filosófico, poético, espiritual)? Há muitas maneiras de enxergar o livro em questão, e de responder a estas questões. Sobre o valor de um livro como o Breviário de decomposição, parece-me que uma pista encontra-se nos Silogismos da amargura (1952), que o sucede diretamente, e que, diferentemente dele, seria um verdadeiro fiasco, um fracasso de crítica e de público que quase levou Cioran a desistir da carreira de escritor. O que se lê no aforismo a seguir – no qual figuram quatro autores emblemáticos, mestres na arte de dar estilo ao seu caráter – se aplica muito bem ao Breviário de decomposição, e à obra de Cioran como um todo:
Se Nietzsche, Proust, Baudelaire ou Rimbaud sobrevivem às flutuações da moda, devem isso à gratuidade de sua crueldade, à sua cirurgia demoníaca, à generosidade de seu fel. O que faz durar uma obra, o que a impede de envelhecer é sua ferocidade. Afirmação gratuita? Considere o prestígio do Evangelho, livro agressivo, livro venenoso entre todos.[1]
Quer livro mais feroz que o Breviário de decomposição? Cada uma das fórmulas enunciadas acima cai como uma luva a ele (e ao conjunto de sua obra). É como se, pelo desvio em Nietzsche, Proust, Baudelaire e Rimbaud, Cioran falasse de si mesmo, de sua própria criação. Penso que é por essa soma de propriedades paradoxais que o Breviário – e a obra de Cioran como um todo – pretende durar, que sobrevive às “flutuações da moda”, que é perene; é por suas virtudes taumatúrgicas (e “traumatúrgicas”) que ele é um livrinho singular, essencial, mais atual do que nunca! E perfeitamente inclassificável, a julgar pelos gêneros discursivos tradicionais: um livro que escapa, e que se apresenta, como o rio de Heráclito, sempre renovado, sempre outro, a cada releitura. Enfim, o caso desse estrangeiro desesperado de lucidez nos defronta com uma rara – e terrível – singularidade, uma alteridade inquietante e salutar, muito bem-vinda em um “mundo de subprodutos onde a ficção adquire as virtudes de um dado primordial”.[2]
Ao abordar o Breviário como um livro “perigoso e essencial”, tenho em mente alguns princípios fundamentais que, ao meu ver, caracterizam o livro: ambivalência e dualidade, poética da inutilidade e do fracasso, singularidade poética e lucidez “luciferina” (para emprestar uma categoria gnosiológica e psicológica de Lucian Blaga[3]). Reunidas, estas propriedades fazem dele um livro insólito e desconcertante, flamejante, de um autor enigmático, emblemático e incontornável, porque paradoxal, moderno e anti-moderno; um diletante desabusado e desocupado (désouvré), entregue a essa “santidade do ócio” que é a inação, “filósofo-artista” e “secretário das próprias sensações”.
Seria o caso de tematizar a recepção do Breviário, as reações causadas por este livro à época de sua publicação, no contexto de uma Europa em vias de reconstrução, tendo sido devastada por duas guerras mundiais em menos de 50 anos, além de revoluções, crises e catástrofes de toda natureza. O Breviário é representativo – de modo ambivalente e paradoxal – dessa que Eric Hobsbawm definiu como a sendo a Era dos Extremos.
Vox (balcannica) clamantis in deserto
O Breviário é um livro deslocado e solitário no contexto histórico-social-cultural em que surge. Vox clamantis in deserto: esta sentença latina, que tomo de empréstimo do subtítulo do livro de Chestov sobre Kierkegaard,[4], aplica-se muito bem a Cioran – figura do estrangeirismo e do pensamento nômade por excelência – e ao seu “lugar de fala” no cenário europeu de meados do século XX. Interesses filosóficos e afinidades eletivas à parte, o Breviário desagradou a Camus, que – como muitos – não levou o livro a sério. É razoável dizer que filosofia francesa de meados do século XX é sinônimo de existencialismo, que por sua vez é sinônimo de Sartre. Cioran – em cujo pensamento Peter Sloterdijk identificou uma espécie de “inexistencialismo dácio-bogomilo”,[5] na fronteira entre os Bálcãs e a Ásia – não tardará a ser visto como o perfeito “anti-Sartre”, como o caracterizará o crítico literário, e amigo italiano, Mario Andrea Rigoni.[6] Segundo Ger Groot,
[…] durante as três primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, essa posição não foi muito aplaudida. A Europa precisava ser reconstruída, o mundo tinha que ser reformado segundo um ideal que a filosofia deveria indicar e que a política e a tecnologia ajudariam a realizar. Foram anos em que a vida material parecia tornar-se cada vez mais fácil e em que Jean-Paul Sartre dominava, não apenas na França, mas também muito além, o mundo filosófico com sua mensagem de um futuro marxista em que a todos seria dada a liberdade.
Nesse contexto, um pensador que anunciava a gritos o seu rechaço da existência e que se negava majestosamente a acreditar em qualquer convicção que afirmasse a possibilidade de um mundo mais feliz, destoava gritantemente. Cioran foi o estraga-prazeres do otimismo do pós-guerra, cuja voz podia a princípio ser ignorada.[7]
A despeito do contraste gritante em relação à atmosfera cultural dominante (reflexo de um temperamento balcânico, de uma singularidade poético-intuitiva exacerbada, análoga à de um Baudelaire, e que é amiúde negligenciada), essa postura meio cética, meio trágico- pessimista, frívola e cínica, desabusadamente niilista, levou Maurice Nadeau a saudar Cioran, nas páginas do célebre jornal da Resistência, o Combat, como um “Pensador Crepuscular”: “Aquele cuja chegada foi preparada por todos os filósofos do nada e do absurdo, o portador por excelência das más-novas. Saudemo-lo e olhemo-lo um pouco mais de perto: ele dará o testemunho de nossa época.”[8] (29 setembro 1949) O escritor André Maurois, por sua vez, anunciaria com entusiasmo no Opera: “Nós temos um novo moralista, ou imoralista, que escreve muito bem: a qualidade do estilo, assim como a do pensamento, me surpreendeu. Este livro provocador capturou minha atenção.” (14 de dezembro de 1949) Por fim, é essa mesma postura, intacta através das idades, que levaria, o filósofo existencialista francês, e grande amigo de Cioran, Gabriel Marcel, a saudá-lo, duas décadas mais tarde, nas páginas do Le Monde, por ocasião da publicação de Le mauvais démiurge, como um “aliado na contracorrente” (28 de junho de 1969).[9]
Um livro que se ama ou se odeia; difícil é entrar em contato com ele e permanecer indiferente, impassível, não ser contagiado de alguma maneira. Verdadeiro incêndio microcósmico, o Breviário agradou, e tem agradado, a “gregos e troianos”. Foi calorosamente acolhido pelos intelectuais da Resistência, na Espanha franquista, como uma espécie de bíblia subversiva e iconoclasta; ao mesmo tempo, muitos à direita, conservadores, repudiaram e repudiam o livro, desprezando o seu autor como sendo demasiado “niilista”, “cínico”, quando não “superficial” e “fácil”. Qual a razão dessa improvável e adversa popularidade impopular, dessa cumplicidade na Queda e no Fracasso? Creio que, como Nietzsche ou Dostoiévski, Cioran vai ao fundo da condição humana, tocando em certas cordas da experiência humana universal que se situam além dos quadros estreitos – sempre limitadores, sempre redutores – das ideologias e das “visões de mundo”.
“Um passado infame” (Petreu): entre ideologia e lucidez, fanatismo e anti-fanatismo
O estrangeirismo (carregado de Unheimlichkeit) é o primeiro dado biográfico significativo acerca desse “ilustre desconhecido”, como o saúda Patrice Bollon em sua biografia crítica: Cioran, l’hérétique. CIORAN: este é o primeiro nome romeno – formado por 6 letrinhas, e tão sugestivo, semanticamente, a julgar pelo universo lexicográfico da língua romena – que vi na minha vida, há quase vinte anos, na capinha branca da primeira edição do Breviário, traduzido pelo professor Brum, com uma pintura de Dalí na capa. Eu não podia imaginar, então, que este nome se tornaria, para mim, metáfora da Romênia – assim como Cioran diz em Lágrimas e Santos que “Teresa de Ávila é uma metáfora do coração”. Que CIORAN se tornaria a (des)ocupação de toda uma vida, uma paixão inesgotável, meio inútil, meio útil.
Enfim, toda essa digressão para manter alerta o espírito contra julgamentos sumários, precipitados e equivocados, sobre o caso-Cioran, e ao mesmo tempo para salientar que o autor do Breviário é – por mais que ele mesmo o renegue, do fundo de uma vergonha ancestral, e secreta, em relação ao “Nada Valaco” que o constitui – um espírito do Leste Europeu, balcânico, romeno, transilvano. Na falta de outro termo melhor, e menos inflacionado, diria que há bastante ressentimento na sua história de vida, na sua romenidade, que nada – nem ele mesmo – pode apagar ou esvaziar. Mas um ressentimento que, no limite, não se volta contra ninguém em particular, contra este ou aquele invasor e inimigo histórico, mas contra Deus ou o Destino, “palavra preferida na terminologia dos vencidos”, lê-se no Breviário. N-a fost să fie: é a ladainha romena por excelência, a expressão de lamúria que lhe é própria (“Não era para ser”).
A pergunta inevitável que se faz ao entrar em contato com o Breviário: quem é o autor de tamanha temeridade? Quem é o responsável por tão notável des-astrum? Quem é o “Pai do logos” em questão (para empregar uma expressão platônica retomada por Jacques Derrida)? De onde vem? Qual sua história de vida? Do seu passado, pouco ou nada se sabe inicialmente. A sua vida pregressa, antes de desembarcar de trem em Paris, em 1937, havia sido, na infância, supremamente feliz (até por volta dos dez anos); depois progressivamente ansiosa, problemática, agitada e insone, culminando em crise, queda e desespero; foi inclusive, durante algum tempo, uma existência delirante, profética e fanática (contrapartida exterior, funesta, de uma experiência eminentemente interior, extática, como demonstram vividamente seus primeiros livros romenos). Todo o contrário, portanto, do que “reza” o Breviário. Se há uma razão pela qual ele é um requisitório cáustico e tão veemente contra todo tipo de fanatismo e dogmatismo, religioso ou secular, é porque, sendo autorreferencial, o Breviário possui uma significação palinódica (de palinódia, retratação). Cioran sabe, por experiência de causa, o que é o fanatismo e o dogmatismo intratável, o irracionalismo e outros tipos de excessos. Dito isso, o Breviário possui um imenso valor espiritual (heterodoxo), de cunho taumatúrgico: qual seja o de comunicar, e inspirar, a vertigem diante dos abismos do eu, e o que é mais importante, a vontade-necessidade radical de desprendimento e liberação, de transcendência em relação ao eu e suas ilusões inerentes: seus “dogmas inconscientes”. Nele, estética, ética e metafísica se plasmam num discurso da lucidez como Poética da Decomposição e “código do desespero”, mas também a lucidez como dispositivo de anti-desespero.
É fundamental conhecer, tanto quanto possível, os precedentes bio-bibliográficos do Breviário, as experiências e os textos romenos do jovem Cioran, em grande medida determinantes para a gênese e a fisionomia deste livro que de francês só tem o idioma. O Précis de décomposition, originalmente Exercices négatifs, vem marcado por uma negatividade e uma dualidade que saltam aos olhos, coincidindo idealmente na imagem da dilaceração. Tudo o que nele é chamas e lamento, chorado ou gritado, todo o pathos elegíaco que o caracteriza, cai na conta da romenidade de Cioran.
Como salienta Petreu, o Précis de décomposition é o livro de um ex-simpatizante da Guarda de Ferro, de um de um ex-fanático, e isso é muito relevante no que concerne à gênese do livro (inicialmente intitulado Exercices négatifs). Em seu début escrevendo em francês, Cioran não quer deixar margem para dúvidas sobre a ruptura radical com o seu passado e, mais do que isso, com o seu antigo eu (a epígrafe do livro, extraída de Ricardo III, de Shakespeare, é sugestiva: “I’ll join with black despair against my soul, and to myself become an enemy”). Doravante “Esteta Hagiógrafo”, “Parasita dos Poetas”, “Troglodita edulcorado em contato com o Ocidente”, o Insone Transilvano se forjará uma nova “persona” (negativa), comprimindo o seu primeiro nome – Emil – numa sigla, sequência das duas primeiras letras: E. M. Cioran, escolha inspirada – após a experimentação com uma diversidade de outras iniciais, como nos mostra Nicolas Cavaillès – no romancista britânico E. M. Forster (e que nada tem a ver, como se costuma pensar, com um suposto nome do meio, como “Mihai” ou “Michel”). Como Baudelaire antes dele, Cioran – pensador da anti-natureza, crítico da ideia de physis, sempre suspeita – faz o elogio da maquiagem, da máscara, da aparência, do estilo como estetização do caráter, que se tornam, em toda sua artificialidade, a segunda ou primeira pele, pois não há “o Ser”, essências, entidades e identidades transcendentais, imutáveis e intemporais; tudo é aparecer, devir, mostrar-se e ao mesmo tempo ocultar-se, e a “natureza”, que deixou de ser percebida como a instância da ordem, da regularidade e da harmonia de conjunto, filtrada pelo viés bíblico do Pecado Original, ponto em comum entre Cioran e Baudelaire, a partir de Pascal, será vista como uma instância má, perversa, hedionda, perfeitamente imoral.
Eis a encruzilhada, e o grande desafio, do jovem insone “nos cumes do desespero”: fanatismo e anti-fanatismo, totalitarismo e lucidez – sendo que a lucidez é/será anti-totalitária por excelência. Prevalecerá, após trancos e barrancos, deslizes e recaídas, a lucidez como antifanatismo e princípio antiideológico, fator de “desfascinação” e desilusão integral, inadesão à vida e à morte, ao que quer que seja; estado de não-cumplicidade universal, des-identificação com o ser enquanto ser (vide o “Traidor Modelo”). O Breviário é apenas a primeira demonstração, em francês, do triunfo ulterior da lucidez sobre o fanatismo e o totalitarismo, da lucidez como ceticismo e pessimismo diletantes, inadesão ao que quer que seja, pensamento privado (de um Privat Denker, como Jó) e “secretariado das próprias sensações”…
Como Cioran mesmo confessa à amiga Jeni Acterian, o Breviário representa uma “despedida”, é como uma “carta de divórcio”, simbolizando uma pequena morte e o “renascimento” – já em vias de decomposição! – num idioma estrangeiro… Essa intencionalidade de ruptura, separação e oposição radical fica patente em aforismos como “O Antiprofeta”, “O Traidor Modelo”, “Dualidade”, “O Renegado”, “Efígie do Fracassado”, “A Mentira Imanente”, “O Homem Carcomido”, “Tribulações de um Meteco”, “O Autômato” e “O Corruptor” (todos eles claramente autorreferenciais). Segundo Marta Petreu,
[…] o leitor familiar com a sua vida e obra romenas descobre no Breviário de decomposição um autor disposto a contradizer suas antigas crenças e ideias, a renegar seus ideais de outrora. […] Contudo, o mais inquietante a respeito do Breviário de decomposição é o fato de que Cioran condenava e refutava suas antigas crenças não em nome de novas ideias e convicções – pois ele já não possuía nenhuma – mas por causa da ausência de um ideal. O Breviário de decomposição é o livro de um autor que foi do total engajamento político ao niilismo dos grandes sofistas.[10]
Sugiro pôr entre parênteses, por razões propedêuticas, essa caracterização – sumária, rudimentar – de Cioran como um “sofista”, cujo pensamento “niilista” seria equiparável ao de um Górgias. Não que não haja afinidades, mas é que Petreu parece endossar o pré-conceito, de matriz platônica, de que Górgias e má-fé, Górgias e falsidade, Górgias e demagogia são sinônimos.[11] Não pretendo questionar a transformação apontada por Petreu, nem o engajamento político fascista como “pecado original” (Brum), erro de juventude e ponto de partida dessa mudança radical, apenas problematizar e questionar a caracterização – simplista, reducionista, “manualística” – de Cioran como um “sofista” e um “niilista” tout court. Poder-se-ia dizer que Cioran é, em muitos aspectos, todo o contrário de um sofista. Enfim, clichés que ele mesmo não fez nenhum esforço para evitar, muito pelo contrário: fez de tudo para suscitar mal-entendidos, equívocos e aturdimento nos espíritos. O contrário do “Sobretudo não me confundam”, de Nietzsche…
“A vida como estado de não-suicídio”: um pessimismo jovial e salutar
Este livro de um pessimismo irrespirável, e não obstante estranhamente salutar, ajudaria o poeta Jules de Supervielle – um dos primeiros a lê-lo, ainda em versão manuscrita – a sair de uma depressão, como ele mesmo confessaria ao jovem escritor. Eis, de fato, algo a se pensar: o paradoxo do valor terapêutico, salutar, de um pessimismo como o de Cioran – tanto da perspectiva do próprio escritor, às voltas com essa pharmakographía (de onde o “Veneno abstrato”) em que consiste o trabalho de pensar-escrever, com toda a sua virtude terapêutica, como ademais da perspectiva do leitor, às voltas com uma leitura cujo efeito é, paradoxalmente, inspirador, tonificante, salutar. A propósito, Ger Groot também tematiza essa vontade de ruptura e oposição radical apontada por Petreu. Segundo o exegeta holandês, a obsessão de E.M. Cioran, écrivain de langue française, não é (mais) a luta política e a “transfiguração da Romênia”, mas, doravante, “[…] a inutilidade irremediável de qualquer empresa humana. […] Se levássemos a sério a condição humana”, escreve Groot, a propósito de Cioran, “não poderíamos eludir a questão do suicídio. Toda a sua obra […] é um grande esforço para manter à distância e aplacar essa escolha.”[12] Concordo com Ger Groot que, se a conclusão lógica do pensamento de Cioran parece levar à ideia do suicídio, da morte e do nada, há na sua obra, e no Breviário, algo que contraria o ato capital, que o difere indefinidamente, suspendendo-o, fazendo-o confundir-se – virtualmente – com a vida mesma, definida no Breviário como um “estado de não-suicídio”. O pessimismo jovial do Breviário tem a virtude de renovar continuamente em nós a “tentação de existir”.
Um livro perigoso e essencial
Não parte de mim, originalmente, a caracterização do Breviário como um livro “perigoso”. O perigo-Cioran foi tematizado, não sem ironia, por Verena von der Heyden-Rynsch, leitora alemã que se tornaria a editora de um livrinho póstumo de Cioran, partindo de um dado biográfico verídico. Por ocasião da publicação da edição alemã do Breviário de decomposição, intitulado Die Lehre von Zerfall, Verena escreveu, no jornal Zeit, um artigo provocador e à altura do livro resenhado: “O Homem: um Erro de Cálculo da Natureza”.[13] Ela apresenta o Précis – Die Lehre von Zerfall em alemão – como um livro “perturbador” (bedrängende) e “incitador” (aufstachelnde), e que “queima até hoje”. A leitora se pergunta: “Quem é esse, que um crítico parisiense rejeitou como ‘impróprio para menores’ [jugendfährdend], e que por muito tempo permaneceu uma ‘uma dica secreta para conhecedores’ [ein Geheimtip fûr Kenner]”, e que é cada vez mais lido por jovens, na França e nos mais diversos países (até no Japão), por intelectuais à esquerda e à direita, ateus e religiosos igualmente? É que, após a publicação do Breviário de decomposição, um crítico francês teria escrito uma carta de repúdio a Cioran, repreendendo-o pela “irresponsabilidade” de publicar um livro como aquele, que poderia cair nas mãos de adolescentes, etc. De certa forma, ter um Cioran em casa é a antítese de ter uma arma de fogo; e no caso de possuir as duas coisas juntas, e se uma criança pegasse o livro em vez do revólver, perderia toda razão de utilizar o revólver, contra si mesmo ou outrem. Contrariamente ao que supõe o crítico que o acusou Cioran de niilista irresponsável, a verdade é que, para além de Jules Supervielle, o Breviário tem servido, para leitores de todas as origens e backgrounds, como uma fonte de consolo no desconsolo, de inspiração na desilusão, de ânimo nos momentos de crise e desespero. O Breviário é um manual de como entrar e sair de desesperos. “Perigoso”, porque – como afirma Jacques Lacarrière, citado por José Thomaz Brum no prefácio à edição brasileira – o seu autor nos faz ver, experimentar – desde que se tenha coração aguerrido – “os apocalipses e abismos do ser que ele sobre nos nossos olhos”; porque – Cético – o autor não propõe fórmulas, receitas, respostas para as grandes questões, porque não mente nem adula. “Perigoso” porque abismal, pois, “animado de uma vitalidade autonomia, ‘em chamas’ – como escreve Sylvie Jaudeau – é por si só uma figuração do mal”.[14]
Para concluir, gostaria de articular algumas noções em virtude dos quais considero o Breviário de decomposição um livro “perigoso e essencial”: dualidade, singularidade poética, inutilidade e liberdade fragmentária. O exercício vertiginoso do pensamento livre de toda amarra ideológica, moral, religiosa, o pensar sem chão, como atravessar um abismo equilibrando-se sobre uma fina corda. sem nenhum dispositivo de segurança, o pathos da lucidez – conforme a concebe o nosso autor – conduz a essa quádrupla condição, que caracteriza o Filósofo-Artista de tipo cioraniano: desocupado, “mais inutilizável do que um santo”, desenganado, magistralmente fracassado. Num mundo pautado pela lógica do desempenho, da produtividade e da eficácia total, do espírito empreendedor aplicado a todas as esferas da existência, nada mais bem-vindo, mais salutar que esse “anjo reacionário” da lucidez, a defender, sem nenhum pudor, as virtudes da preguiça e da inação. Felizmente, Shakespeare nunca serviu para nada”, escreve ele no Breviário; fazendo do “Inventor do Moderno” (Bloom), como paradigma de inutilidade: Cioran não tem lições a ensinar, respostas a dar (ele mesmo as busca, as necessita): como o mendigo tematizado por ele mesmo, e que estende a mão não como se pedisse esmola, mas num gesto de entrega, o autor do Breviário nos entrega a sua cegueira.
Republicou isso em Itinerarivm Mentis in Nihilvme comentado:
Texto apresentado na Jornada Acadêmica UFABC – 70 anos do Breviário de Decomposição (1949), de E.M. Cioran (27/11/2019).
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