“O criador paroxismo da ilusão – amor” (Juan Pablo Enos Santana Santos)

RESUMO: O filósofo e ensaísta Emil Cioran é constantemente lembrado pelo seu ceticismo, lucidez, desespero e pessimismo. No entanto, mostro nesta comunicação as diversas formas em que o amor, de carácter individual e criador, aparece em seus dois primeiros escritos de juventude. Neste momento, Cioran vê o amor como fonte vital de transfiguração. Em sua segunda fase, a francesa, por sua vez, o amor mal aparece. Meu objetivo é expor a continuidade temática dessa fonte de ilusão: o amor, voluptuoso encanto, que faz com que o amante negue o conhecimento da pessoa amada e crie o objeto de desejo. A densidade de tal estado, em seu auge, se não realizado, pode levar ao suicídio, impulso patológico que leva à destruição total do ser daquele que ama. Paradoxalmente este estado de ilusão é enaltecido pelo filósofo, mesmo em sua fase de expressão francesa, contrastando com sua postura não metodológica de máxima lucidez. Proponho uma leitura que vise às nuances dessa pulsação íntima – Amor.
Palavras-chave: Transfiguração; Amor; Ilusão; Entusiasmo; Pessimismo; Ceticismo.

Introdução:

O principal tema desta comunicação é destacar como o filósofo e ensaísta Emil Cioran de origem romena apresenta o amor em sua obra. Este tema é recorrente em seus dois escritos de juventude – Nos Cumes do Desespero; e Livro das Ilusões, ambos já traduzidos para o português. Posteriormente, farei alusões a algumas obras já da fase francesa em que o tema do amor ressurge na obra livro Silogismos da Amargura e no livro que completa em 2019 setenta anos – Breviário de Decomposição, texto seminal no qual o autor apresenta sua visão marcantemente pessimista e agonizante do homem. Destaco, contudo, as dificuldades inerentes a qualquer estudo sobre Cioran. Sua obra exige a sensibilidade de uma leitura que não desconsidere as nuances estilísticas do autor. Além disso, em primeiro lugar, gostaria de afirmar que tal filosofia não constitui uma ética normativa, mas sim uma dissecação, uma autêntica autópsia da ilusão, amor e suicídio.

Minha exposição tem como ponto de partida o primeiro escrito de Cioran Nos Cumes do Desespero. Na apresentação desta obra em língua portuguesa, José Thomaz Brum ressalta a “superabundância vital” e o lirismo de tal escrito. Em vários de seus ensaios, Cioran expressa de modo exaltado suas divagações de origens orgânicas, viscerais, anímicas, e rejeita de modo categórico a distinção veneranda entre corpo e alma, típicas da metafísica.

No primeiro ensaio: Ser Lírico, Cioran questiona a impossibilidade de “permanecermos encerrados em nós mesmos” em momentos capitais, ou seja, de enorme agitação íntima de nossa inclinação à expressão em estados de culminante inquietação. Seria então, para o filósofo, mais “fecundo entregar-se” às agitações íntimas e orgânicas, cuja “elevação” Cioran comparada ao paroxismo musical, encerrando-nos em nós mesmos, ou seja, sem o recurso da expressão. Todavia, o lirismo representa uma força subjetiva que exige expressão, do qual não se pode manter-se “fechado”. Tornamo-nos líricos. Daí então os apelos íntimos, “subjetivos de nosso ser”, e o ritmo de tal palpitação orgânica torna-se o centro de nossa personalidade: a transfiguração para o lirismo. Passagem da perturbação para expressão poética que se manifesta em dois casos: momentos capitais, ou na agonia. Para o filósofo essas perturbações íntimas que palpitam no seio exigem expressão. Nesta passagem, ainda imatura, aos 22 anos, a marca da inclinação à produção que permanece durante décadas com a efetivação de seus outros escritos já era lucidamente exposta. Mesmo pessoas impessoais, objetivas, em circunstâncias que atingem o paroxismo são capazes de experimentar um sentimento único que as atualiza, em vocabulário cioraniano: transfigura. Esta concepção de expressão ecoa no livro “Silogismos da amargura”. Na sessão “Vitalidade do amor” – Cioran nos diz:

Um amor que acaba é uma experiência tão rica que faz de um cabeleireiro um êmulo de Sócrates (CIORAN, 2011, p. 82).

Contudo, para os indivíduos impessoais, o lirismo é apenas um acidente, um evento particular, oriundo dos acontecimentos externos, das fontes externas que os afetam.  Esgotadas as fontes exteriores, dá-se o fim da expressão e da agitação interior. O “tornar-se” lírico autêntico tem sua origem, para Cioran, em uma “lesão orgânica e total”. que só é possível na loucura; o lirismo autêntico só é possível, então, com “um grão de loucura interior”  que está além de sistemas e formas.

A sensação de morte na vida e a paixão são estados irracionais, fluidos, que escapam ao conceito encontram sua expressão na forma poética. O subjetivo e o individual transcendem sistemas e conceitos.  A notória e muitas vezes já sublinhada “coerência temática”, ainda que os estilos de seus escritos tenham mudado ao longo da obra, continuou sempre avessa à sistematização.

Nesse ensaio inicial vimos a aversão do autor a conceitos fechados por sua incapacidade de exprimir a profundidade de uma energia que emana da carne. Vejo, pois, na seguinte passagem, um aceno àquilo que interpreto como uma “filosofia da linguagem” cioraniana:

[…] O fato de que quase todos nós passamos a escrever poesia quando amamos é a prova de que os meios do pensamento conceitual são parcos demais para expressar uma infinidade interna, e que só na presença de um material fluido e irracional é que o lirismo interior encontra um modo adequado de objetivação” (CIORAN, 2012, p.18)

Só há verdadeiro valor nas experiências de maior intensidade, culminantes, últimas, místico-extáticas. Em entrevista o autor esclarece o significado de sua recorrente alusão ao Místico¹, enquanto acontecimento excepcional em intensidade, vivido em pouquíssimas vezes ao longo da vida. Sabemos, pois, da necessidade de expressão de estados anímicos únicos relacionados ao amor, mas qual seria o fundo do qual emergem tais agitações fisiológicas?

Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia (CIORAN, 2011 p, 60).

No ensaio “Entusiasmo como forma de Amor”, texto já comentado por Rodrigo Inácio de Sá, no Portal Cioran Brasil,- “jovem romântico – Cioran” afirma que a manifestação primordial do amor é o amor entre o homem e a mulher; ainda que sem restringir tal fenômeno multifacetado. A figura peculiar do entusiasta é requerida para contrastar com o amor intenso, individualizado. O Entusiasta vive e age de forma desinteressada ao fracasso ou sucesso, cuja ação é pura fluidez: pleno, desprovido de dramatismo. Ser raro e intrigante cujo amor se manifesta de forma desprovida de individualidade. Todavia, Cioran enfatiza que o amor verdadeiro, do qual a especificação é associada à intensidade, carece de uma especificação para se realizar.

“[…] Quanto mais intenso é o amor, mais individual e mais ligado a ele é a especificação do objeto […] Quanto mais intensa é a paixão, maior proeminência adquiri o objeto da paixão” (CIORAN, 2012, p. 93)

A efetividade de dessa forma de amor é justificada pela fecundidade a que se leva, nos cumes.

Quem se suicidou por Deus, pela natureza, pela arte? São realidades demasiado abstratas para serem amadas com intensidade – (CIORAN 2012, p. 91)

As líricas considerações sobre o amor em Nos Cumes do Desespero e O livro das ilusões são contrastadas no Breviário de Decomposição. Se o jovem Cioran exaltava a figura do entusiasta, o mesmo não o faz no seu primeiro escrito de expressão francesa em relação àqueles que amam ideias e as inflamam; característica exercício des-fascinação. A paixão por um deus ou ideal, ambos criações, pronunciadas pelo profeta-fanático são objeto de reflexão na “Genealogia do Fanatismo.

“Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. (CIORAN, 2001, p.13)

No ensaio “O sentido do Suicídio” Cioran rechaça o “ridículo” de uma hierarquia de suicídios. Em Cioran, desde seus primeiros escritos, o caráter fisiológico, “o impulso” que leva alguém a tal ato capital não é fruto de uma longa análise racional sobre o conteúdo da vida, mas de um impulso orgânico anterior a uma possível reflexão acerca da nulidade da existência. Pessoal e íntimo, esse impulso é patológico. Uma tragédia interior. Sobre o Suicídio por Amor, para Cioran, fica o desprezo àqueles que são incapazes de compreender que o amor irrealizável significa para quem ama uma impossibilidade de existir, perca total de sentido, e a anulação do próprio ser, sendo mesquinha, mesmo vulgar, a tentativa de buscar sentidos em relação ao impressionante e absurdo de um ato último.  Por outro lado, após experiências de paroxismo, vislumbramos a tragédia do tempo e do quanto somos privados na superficialidade da existência comum. Do quanto perdemos vivendo.

Cioran elabora um conceito chave acerca do sentimento que ele nomeia como sensação de fusão: a “TRANSUBSTANCIALIZAÇÃO DO AMOR¹.  O paradoxo se dá, pois, por meio de um indivíduo, tem-se acesso um sentimento de universalidade que rompe as barreiras materiais, como se a pessoa amada se fixassem uma a outra, “transubstancializassem”. O absoluto sendo acessado por meio de uma criatura individual a revelia dos conceitos de forma e categoria; insuficientes para as essências da vida. No beijo, então, é possível uma sensação de comunhão e fecundidade que nos aproxima mais da essência íntima da vida, um paroxismo único e extático, que nos dá a ilusão de espiritualidade.

[…] O encanto absurdo do amor autêntico, do amor intenso, é o de encontrar mistério numa só criatura, descobrir – ou melhor, inventar – um Infinito numa existência individual de uma desconcertante finitude. (CIORAN, 2012, p.143)

No Livro das Ilusões essa perspectiva de invenção do objeto de amor é retomada. Tema que aproxima Cioran da filosofia trágica Nietzscheana. Não pretendo, pois, de reduzir uma filosofia a outra, mas enfatizo tal ponto como recurso para vislumbrar os traços da leitura cioraniana, tanto de Nietzsche, quando Schopenhauer, evidenciando a singularidade que distingui Cioran do filósofo do pessimismo e do primeiro filósofo trágico. Para Nietzsche em Além do bem e do Mal criamos aqueles com quem lidamos.

138. O que fazemos em sonhos, fazemos acordados: inventamos e construímos a pessoa com quem lindamos – para em seguida esquecer que assim fizemos. (NIETZSCHE, 2006, p. 69)

Essa criação onírica nietzscheana ecoa em Cioran. No livro das ilusões, texto em que Cioran coloca o êxtase musical e erótico como estados culminantes e extáticos, perspectiva semelhante aparece. Nesse livro nostálgico da imaterialidade de momentos anteriores à individuação é perene em todo texto e a relação entre melancolia e amor é retomada, assim como o absurdo de se continuar a viver após os instantes extáticos. Os cumes da melancolia são alcançados quando transfigurados pelo amor, mas esta transfiguração não é criadora. Neste momento, para Cioran, apenas a paixão intensa pode se efetivar em criação. (CIORAN, 2014, p. 48)

Ressalto, sobretudo, um dos modos pelos quais o amor se apresenta nos cumes de sua intensidade, cujo fenômeno permanece atualíssimo, mostrando a atemporalidade da concepção cioraniana acerca amor – O amor à distância. Para Cioran, o amor é uma fuga da realidade e da mediocridade do conhecimento objetivo. Uma pulsação extraordinária e profunda. Em Nos Cumes do Desespero, como já comentado, a tragédia do amor fora discorrida em termos de intensidade, transfiguração, lirismo e transubstancilização, ou seja, quebra do principium individuationis (“princípio de individuação”), fixando a pessoa amada em nós, e sendo fonte de acesso ao absoluto. Perspectiva que aproximava naquele momento Cioran do vocabulário schopenhauriano.

No livro das ilusões, por outro lado, estamos mais próximo do contato com a leitura cioraniana de Nietzsche, na negação do conhecimento frívolo e criação onírico-apolínea do objeto de amor. A relação entre sujeito e objeto, típica dos metafísicos, em vista de um conhecimento sólido, uma pretensa “verdade” na adequação do intelecto ao objeto, que observamos ao longo da história da filosofia, não pode, para Cioran, ser fecunda na perspectiva do amante. Quando buscamos o conhecimento destruímos a pulsação interior.  O amor enquanto fuga da verdade. O conhecimento apenas é possível quando a pulsação intensa psíquica já não ocorre algo oposto, refratário ao sentimento ao amante.

O amor é uma fuga para longe da verdade. E amamos verdadeiramente só quando não queremos a verdade. O amor contra a verdade, eis uma luta pela vida, por nossos próprios êxtases e por nossos próprios erros (CIORAN, 2014, p. 51).

Permanece, pois, a necessidade de uma objetivação que “canalize” o pulsar inflamado do amor, voluptuoso encanto, mas é sua forma pura que buscamos – o amor primordial.  Para Nietzsche em “Além do bem e do Mal”, amamos o próprio desejo, e não o desejado – Aforismo 175 (NIETZSCHE, 1992. p. 72). Na leitura cioraniana, amamos o próprio desejo de amar. O objeto de amor é meramente um pretexto, ainda que indispensável.

Termino esta comunicação com o seguinte trecho do Livro das Ilusões sobre o amor em sua maior intensidade que interpreto como fundamental para compreensão da temática do amor em Cioran:

Pois no amor nos degustamos, nos saboreamos a nós mesmos, nos deixamos seduzir pelo gozo de nossa palpitação erótica. Por esse motivo o amor é tão mais intenso e profundo quanto mais estamos longe da pessoa amada. Sua presença física orienta demasiado nosso sentimento em uma direção determinada, de tal modo que o que é para nós verdadeiramente uma vivência erótica pura, um impulso subjetivo, parece-nos vir do exterior e desligar-se da presença física da pessoa amada. Só o amor à distância, o amor que cresce alimentado pela fatalidade do espaço, só esse se apresenta como estado puro. Então se tem contato direto com sua profunda interioridade, então se vive o amor como amor, abandonando-se ás palpitações de um sentimento, a seu voluptuoso encanto, que torna fluidos os sofrimentos e os dissipa como ilusão. (CIORAN, 2014, p. 51)

Bibliografia

BRUM, José Thomaz. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

CIORAN, Emil, Nos Cumes do Desespero. Tr. Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2011.

CIORAN, E.M, O livro das Ilusões. Tr. José Thomas Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

CIORAN, E.M, Précis de décomposition. Paris: Gallimard, 1949. Tr. br. José Thomaz Brum. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

CIORAN, E.M. Syllogismes de l’amertume. Paris: Gallimard, 1952. Tr. br. José Thomaz Brum. Silogismos da amargura. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

JAUDEAU, Sylvie. Cioran – Entrevistas com Sylvie Jaudeau, Porto Alegre: Sulina, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do Mal. Tr. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.

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Um comentário sobre ““O criador paroxismo da ilusão – amor” (Juan Pablo Enos Santana Santos)

  1. Ótimo texto! No entanto as referências apresentam problemas. Não é possivel identificar as obras pelos anos. (Não há constam obras dos anos de 2014 e 2012 nas referencias, mas há nas citações) Acredito que tenha trocado as informações apenas .

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