Realizou-se, na Universidade Federal do ABC (UFABC), em 27 de novembro deste ano de 2019, a Jornada Acadêmica – 70 anos do Précis de Décomposition (1949-2019), um mini-colóquio dedicado a debates em torno deste que é o primeiro livro escrito por Cioran em francês, e um divisor de águas no conjunto da sua obra.
No âmbito da recepção lusófona, e mais especificamente brasileira, da obra de Cioran, o aniversário dos 70 anos do Précis de Décomposition, na França, coincide com o aniversário de 30 anos da primeira edição (brasileira) do livro em língua portuguesa, pelas mãos do filósofo, tradutor e amigo de Cioran: José Thomaz Brum, convidado de honra do evento.
A Jornada Acadêmica – 70 anos do Précis de Décomposition (1949-2019) contou com duas mesas de comunicação, além da conferência especial de encerramento, oferecida pelo professor Brum.
Na mesa matutina, Paulo Jonas Lima Piva, professor da casa, especialista em ceticismo e materialismo francês do século XVIII, abordou a relação entre a vida e a obra (notadamente o Breviário, divisor de águas no conjunto da obra) de Cioran. Segundo ele, é importante considerar sobriamente essa relação no caso de um pensador como Cioran, tão sujeito à simplificação, ao estereótipo, ao cliché e à caricatura, de onde o título de sua comunicação: “Cioran, a biografia de um personagem”.
Em seguida, Rodrigo Adriano Machado (PUC-SP), autor de uma dissertação de mestrado sobre a noção de Queda no Tempo em Cioran, propôs uma dupla reflexão sobre o exercício filosófico negativo do autor do Breviário de decomposição, em relação ao imperativo hermenêutico de uma leitura ativa e intuitiva, em se tratando de um autor “fragmentista” como Cioran, e de um livro vertiginoso como o Breviário.
A terceira comunicação da manhã, de Gregory Augusto Carvalho, também da UFABC, desenvolveu-se em torno de uma questão candente na economia do pensamento de Cioran, e que, já despontando em sua forma maturada a partir do Breviário, se tornará o tema central de História e utopia: “A História universal como história do Mal: dogma, fanatismo e história no Breviário de Cioran”.
Por fim, os trabalhos matutinos da Jornada Acadêmica incluíram a comunicação de Juan Pablo Enos Santana Santos (Universidade São Judas Tadeu), sobre um tema insuspeito, e muito pouco explorado, na constelação temática da obra cioraniana: “O amor como paroxismo gerador de ilusão”. Segundo o exegeta, haveria uma continuidade subterrânea, logo uma permanência discreta, da temática de Eros através da obra cioraniana, desde os escritos de juventude, até a produção francesa, a despeito do tratamento desabusado e cínico que o autor do Breviário dá ao amor.
A mesa vespertina contou com três comunicações, uma a menos que a matutina. A primeira delas, de Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes (PUC-SP), abordou, a partir de um texto de Verena von der Heyden-Rynsch, a recepção do Breviário, à época de sua publicação, como um livro “perigoso”, e (justamente por isso) essencial. Trata-se de reconhecer o indubitável valor filosófico, poético e espiritual deste livro perturbador, cujo propósito não é instruir, edificar, mas abalar, produzir vertigem e lucidez, fazer “despertar”.
Em seguida, Rafael Augusto de Assis (UMESP/UFABC) tratou do tema da “prostituição como pedagogia”, a partir do aforismo-chave do Breviário, “Filosofia e prostituição”. Segundo o exegeta, que entrevistou senhoras idosas que, por sua condição sociável miserável, precisam prostituir-se, nada mais pertinente do que as reflexões de Cioran a respeito da prostituição como uma “escola ambulante de lucidez”. E citou o caso de uma senhora, à qual perguntara pelo seu “nome verdadeiro”: como reação, ela teria soltado uma gargalhada. Sua resposta: “Meu nome verdadeiro? Qualquer um, o que cada cliente preferir, como quer que me chamem, este é o meu nome…”
Encerrando a mesa vespertina, o professor Flamarion Caldeira Ramos brindou o público presente com uma comunicação intertextual e dialética: “Cioran, Camus e o Brasil em decomposição”, a propósito da coincidência de datas, tanto da publicação do Breviário quanto da viagem de Camus ao Brasil, cuja mentalidade cultural coronelista e autoritária não teria agradado ao autor franco-argelino. Flamarion partiu dessa coincidência bio-bibliográfica para propor uma reflexão crítica sobre a realidade atual do Brasil, em plena decomposição fascista, parafraseando, ao fim, Cioran: “Que me ofereçam outro país, ou sucumbo.”
Por fim, coroando a jornada acadêmica dedicada a Cioran, e particularmente a este livrinho singular, perturbador e estranhamente salutar, revigorante da “tentação de existir”, o professor José Thomaz Brum nos brindou com uma comunicação sobre a sua amizade com Cioran, apresentado a ele por Clément Rosset, que foi o seu orientador de doutorado na França, e também sobre o desafio de traduzir Cioran, que acompanhou o trabalho, fazendo sugestões. Brum fez questão de desmitificar uma série de preconceitos e clichés que circulam em torno de Cioran, salientando a complexidade (e profundidade) da obra, irredutível a classificações, categorizações e etiquetas, e chamando a atenção ao contraste entre uma obra perturbadora e uma caráter amável, sensível e solidário. Brum (que foi, junto com Cioran, homenageado pelo aniversário de 30 anos da tradução portuguesa do Breviário) leu uma das cartas de sua correspondência com o autor traduzido e celebrado neste dia. Nela, Cioran dá o seu aval, manifestando a satisfação de um espírito sumamente exigente, à escolha do título português: Breviário de decomposição, alinhando-se com a escolha anterior de Savater, Breviario de podredumbre, mas mantendo o substantivo francês do título original, décomposition.
“Ça me plaît, notre decomposição (em português no original), escreve Cioran na carta. “Breviário de decomposição, c’est un titre qui a um charme fatal”, conclui o nosso autor.
O evento foi co-organizado pelo Portal E.M.Cioran/Brasil, em parceria com o programa de pós-graduação em filosofia da UFABC, particularmente com o professor Flamarion Caldeira Ramos, cuja iniciativa e diligência tornaram possíveis a realização do evento.