1. Introdução
“Dans le Jornal Do Comercio de Rio de Janeiro du 2 XI 68, un inconnu, Correia de Sá, vient d’écrire un des articles les plus sérieux qu’on ait jamais écrit sur moi. Que ce soit dans un «Journal de Commerce», cela me plaît” (CIORAN, 1997, p.644).
O extrato acima encontra-se nos Cahiers, como se sabe, uma edição póstuma (1997) dos trinta e quatro cadernos de anotações escritos por Cioran entre 1957 e 1972. No apontamento, o filósofo romeno radicado na frança destacou um texto crítico escrito por um brasileiro em 02 de novembro de 1968 no periódico Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Cioran caracterizou o autor como um “desconhecido”, ou seja, um crítico que aparentemente não ostentava qualquer notoriedade em sua época. Contudo, o artigo lhe causou grande impressão, que foi registrada em nota. Cioran declarou o seu profundo apreço pela perspicácia intelectual do autor. O escrito do brasileiro, entretanto, não estava apresentado aos leitores até o presente momento.
Mesmo entre tantas outras contidas no compilado dos Cadernos, ao público do pensador romeno, esta nota aparece como um gatilho para a curiosidade: o que escreveu Correia de Sá? Quem era esse homem? O que terá agradado tão seriamente a Cioran em seu artigo? Aos pesquisadores, entretanto, tais perguntas se exibem já não simplesmente como uma instigação, mas tal como um verdadeiro vazio, uma lacuna no tocante ao assunto sobre com o que concordaria Cioran ao examinar uma análise crítica a respeito de si mesmo, e, ainda mais gravemente para nós brasileiros, uma omissão ao tema da recepção das obras cioranianas em nosso país.
A tarefa para a qual nos dedicamos, a partir do ensejo oferecido pela nota de Cioran, foi a de resgatar o ensaio do Correia de Sá, além de o apresentar em sua integralidade e mais uma vez aos leitores, fazendo jus ao estatuto que lhe pertence, conferido pelo próprio Cioran: como um dos artigos mais sérios já escritos sobre o filósofo. Antes disso, procuramos realizar um esboço conciso acerca da recepção da obra do romeno no Brasil, partindo da recuperação de artigos, comentários e ensaios de jornais nacionais do período entre 1949 (marco da publicação na França de Précis de Décomposition) até 1970 (data da provável terceira publicação de Correia de Sá sobre Cioran) sem com isso pretender esgotar a matéria que permanecerá incompleta, considerando todas as possibilidades que se sugerem nas narrativas dos colunistas durante a época em questão.
Cabe a nós, previamente aos comentários, destacar a função crucial da ferramenta de pesquisa desenvolvida pela Biblioteca Nacional Brasileira, a Hemeroteca Digital, através da qual tivemos acesso irrestrito aos periódicos digitalizados disponíveis em seu acervo. O método de pesquisa por palavras-chave impulsionou drasticamente o ritmo de levantamento dos materiais necessários ao ofício, propiciando à investigação vários níveis e direções de perscrutação. Como reforço e incentivo às iniciativas desta natureza, ressaltamos nossos sinceros agradecimentos. Sublinhamos, igualmente, a opção por transcrever sem alterações a grafia dos excertos selecionados para um esboço da recepção, presente logo abaixo. Fazemos exceção somente à transcrição do ensaio de Correia de Sá, texto comentado por notas de rodapé e apresentado integralmente em português atualizado.
2. Um esboço acerca da recepção das obras cioranianas no país
2.1. Précis de Décomposition e o Prêmio Rivarol (1949-1950)
Nossa narrativa se inicia nos idos de 1949, quando um Cioran desencantado por sua língua materna publica a primeira de suas dez obras em francês, Précis de Décomposition, livro que espantou ao público europeu e que lhe fez experimentar pela primeira vez algum reconhecimento internacional. Em nossa pesquisa, não encontramos nenhuma menção ao autor em periódicos brasileiros nos anos anteriores ao aparecimento da aludida obra, o que provavelmente se refere à baixíssima exposição que a língua romena oferecia na época, fato que fez de Cioran um verdadeiro anônimo fora de seu país até 1949. Em alguns casos, como o leitor observará no artigo de Correia de Sá, os colunistas provavelmente desconheciam as produções em romeno do pensador, sugerindo uma opinião corrente de que Précis fora a sua primeira publicação.
No ano em questão, encontramos a tradução do texto em francês de um Daniel-Rops, pseudônimo do escritor Henri Petiot[1], em cujo conteúdo está um breve comentário à banca analisadora e aos participantes do Prêmio Rivarol, articulado em 1949 e decidido em 1950. Tal premiação se destinava ao autor da melhor obra em língua francesa escrita por estrangeiro, para a qual concorria Cioran, além do poeta brasileiro Ribeiro Couto[2]. Ao falar das obras passíveis de destaque que passaram por sua mão, Daniel-Rops escreveu o seguinte sobre o filósofo: “quantos outros não mereciam ser igualmente distinguidos […] tal como o rumeno Cioran, autor de um Précis de décomposition, amargo e violento, que faz pensar, sob certos aspectos, em Nietzsche”[3] (DANIEL-ROPS, 1949, p. 4).
Após o sucinto comentário, o nome de Cioran só voltou a aparecer nos jornais nacionais no ano posterior, quando sai vitorioso, por decisão unânime na terceira etapa, da disputa pelo Rivarol. O resultado apareceu em 24 de junho de 1950, sendo publicado nos impressos brasileiros já no dia posterior: “O Prêmio Rivarol, fundado no último ano para atribuição aos escritores de nacionalidade estrangeira que escrevem em francês, foi concedido hoje, em terceiro escrutínio e unânimimente, a Emílio Cioran, rumeno, pelo seu ensaio intitulado ‘Tratado de Decomposição’, è de 50.000 francos o total do Prêmio” (CONCEDIDO…, 1950, p. 15).
Entretanto, meses antes da condecoração de Cioran, seu livro já havia causado um primeiro espanto em um intelectual brasileiro, a saber, Augusto Frederico Schmidt, poeta modernista que dedicou duas publicações ao autor romeno, além de citá-lo em uma terceira, todas as referências realizadas na mesma coluna do Correio da Manhã do Rio de Janeiro. O primeiro ensaio, a 31 de janeiro de 1950, revela o tom de surpresa e um certo desconcerto do poeta frente à impressão sobre aquela obra. Escreveu assim: “Não sei, não conheço livro tão penetrado pelo desespêro em estado de indiferença como o de Cioran”. E não bastasse isso, sendo a comparação com Nietzsche quase um movimento intuitivo, arriscou: “O eco dêsse autor, em quem o lê, deve ser semelhante à surpresa que Nietzsche provocou nos seus contemporâneos, nos que de repente se encontravam com o espetáculo que nascia do pensamento do homem de Zaratrusta e do Genealogia da Moral. Mas Nietzsche suscitava a afirmação de certos valores perenes; um frêmito se desprendia dêsse temerário. Cioran, porém, convida ao abandono de qualquer indignação, à indiferença gelada. Em lugar do Super-Homem, o homem-vazio, o homem sem mais curiosidade, resignado ao seu destino de apodrecer como os continentes e as estrêlas…” (SCHMIDT, 1950a, p. 2).
Poucos dias depois, a 05 de fevereiro de 1950, Augusto Schmidt volta a escrever e publicar sobre Cioran, desta vez mais espantado, ainda mais mobilizado e inquieto. Chegou à conclusão de que “é um livro horrível o dêsse romeno admirador de Paul Valery, um livro desagregador, em cujas páginas não se sente sequer a tristeza da revelação de tão grandes desgraças, nem a infelicidade que vem dêsse duro conhecimento de que a humanidade é apenas um pouco de nada a espera continuamente, nas suas gerações sucessivas, do nada”. Mas não se tratou de uma crítica depreciativa à obra, como uma possível demonstração de desagrado estético ou divergência conceitual. Ao contrário, a ideia do horrível de que se serviu Schmidt acompanha o sentimento de espanto, denota a contemplação do terrível, do monstruoso, daquilo que pode haver de tremendo e assustador na obra de Cioran: “Lendo êsse livro que não deve ser lido, porque é dos poucos que realmente fazem mal, lendo êsse triste livro em que tantas verdades são ditas, e em que a Verdade não raro se vela e esconde, lendo esse livro pensei bem mais no ser que o escreveu do que nas coisas por ele escritas […] Quem ensinou a êsse lírico tantas coisas que melhor fôra não saber jamais? Quem pôs, nessa alma humana êsse Tédio que seguindo o próprio possuído é o martírio dos que não vivem ou morrem por nenhuma crença?”. Por fim, sintetiza sua análise explorando qual seja a verdadeira exposição de Cioran através de suas obras: “Uns matam o corpo dos outros; Cioran pretende matar a alma escrevendo o que escreve, mas o que faz realmente é confessar-se, é exibir a todo o mundo, as suas próprias chagas” (SCHMIDT, 1950b, p. 2).
Até então, podemos admitir sem maior esforço que a grande porta de entrada no Brasil para o filósofo romeno foi a sua participação no Prêmio Rivarol. Mesmo antes de triunfar na seleção, a sua menção como um dos destaques da edição pode ter sido a via pela qual Augusto Schmidt chegou a Précis de Décomposition. Obviamente, sendo isso uma mera hipótese, não nos demoraremos na questão. O que nos convém, na medida em que enriquece a nossa narrativa, é propor possibilidades de análise. Neste ínterim, aparece, ao fim do ano de 1950, uma figura fundamental para qualquer estudo de recepção de Cioran no Brasil, um romeno radicado em território nacional: Ștefan Baciu.
2.2. Ștefan Baciu e Cioran (1950-1960)
Antes de introduzirmos as apresentações à pessoa de Baciu, gostaríamos de salientar a necessidade da reunião de suas obras e de informações mais profundas sobre a sua biografia. Do pouco que sabemos, podemos dizer que foi um escritor, poeta, crítico teatral, estudioso da literatura em língua portuguesa e espanhola, professor, jornalista, colunista e, o que nos interessa em especial para o presente trabalho, amigo pessoal de Cioran. No Brasil, começou a publicar em 1949 no Diario Carioca[4]. Escreveu com grande frequência para a Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro. Há de se averiguar a história de sua chegada ao país e de suas viagens por toda América Latina. Foi um profundo conhecedor da literatura brasileira.
Em 03 de dezembro de 1950, publicou um ensaio acerca do Prêmio Rivarol, essencial para os pesquisadores, no qual expôs um pouco de suas relações pessoais com o filósofo: “Foi em Setembro de 1936 que entrou na nossa sala de aula um jovem professor de filosofia. […] O professor de filosofia com um topete louro-acastanhado e olheiras profundas, tão jovem que parecia um colega mais idoso, estava à nossa frente, algo hesitante e surpreso. Era Emil Cioran – e para alguns de nós o seu nome já significava alguma coisa” (BACIU, 1950, p. 5).
Baciu foi um dos poucos alunos que Cioran já teve, quando de sua breve experiência como professor num liceu em Brasov, na Romênia. A impressão do estudante era das melhores: “O nosso novo professor destacou-se dos jovens pensadores que conquistaram um nome a partir de 1930. […] Emil Cioran tornou-se, pelos seus sons patéticos, o mais original e o mais talentoso de todos”. E o encontro não se resumiu à sala de aula, desembocou numa verdadeira relação de amizade: “Creio hoje em dia poder afirmar que, em pouco tempo, travei amizade com o professor de filosofia – fora das relações de mestre e aluno. Ambos, atormentados pelos nossos demônios interiores, permanecíamos inclinados, durante dias inteiros, sobre os nossos autores preferidos […] e os discutíamos em seguida, durante horas e dias, em ‘reuniões’ sem fim, num ‘café’, ou em longos passeios, sob o céu semeado de estrelas” (BACIU, 1950, p. 6).
Baciu perdera o contato com Cioran quando o pensador se mudara para a França. Depois da guerra, o primeiro sinal que o antigo aluno obteve de seu amigo foi a premiação do Rivarol: “Prestei atenção, aqui no Rio, quando um repórter literário informou de Paris que um livro do romeno E. M. Cioran obtivera um grande sucesso. Frequentemente o mundo parece uma pequena aldeia e o livro de Cioran chegou depressa às minhas mãos: ‘Précis de décomposition’” (BACIU, 1950, p. 5). A partir de então, uma grande parte das alusões a Cioran em periódicos brasileiros foram feitas por Ștefan Baciu, com considerável frequência até o fim da década de cinquenta. Dele ainda nos cabe destacar um outro ensaio publicado a 20 de Abril de 1952, em homenagem a Cioran, acerca de seu recém lançado Syllogismes de L’Amertume e o envio para o filósofo de vários textos circulantes no país. Por conta de Baciu, sabemos que Cioran leu alguns poetas brasileiros: “Eis o que afirma o grande escritor E.M. Cioran, que vive em Paris: ‘Li suas traduções da obra dos poetas brasileiros. Acho-as admiráveis e vos convido a publicar o livro com a maior rapidez. Sabeis que os poetas traduzidos são desconhecidos aqui? Falei sôbre êsse trabalho com muitos francêses e êle constituiu uma verdadeira bofetada’”. Por intermédio dele também arquitetou-se uma troca de cartas entre Cioran e José Lins do Rego[5]. Além disso, Baciu contesta para si o mérito pela divulgação da obra de Cioran nacionalmente[6]. Não só no que diz respeito ao pensador, mas a toda a literatura romena, Baciu exerceu um importante papel como propagador[7], e também esse se configura como um assunto para investigações ulteriores. Ao fim da década de 1960 o jornalista, pelo que nos parece, saiu em viagem do Brasil e, já nos anos setenta, constituiu residência em Honolulu, no estado americano do Havaí.
2.3. A década de 1960 e Correia de Sá (1960-1970)
No início da década de 1960, mais precisamente em 1961, Cioran volta a ser reconhecido internacionalmente por uma premiação, desta vez o Prêmio Combat, notícia que fora traduzida em diversos jornais pelo país: “PARIS – O Prêmio Combat 1961 foi atribuído a Emile M. Cioran por sua obra <<Histoire et Utopie>>. O premiado é de nacionalidade rumena, mas tendo vindo para esta Capital na qualidade de bolsista do Instituto Francês de Bucarest, em 1937, aqui permaneceu desde então”[8] (PRÊMIOS…, 1961, p.2). Ao que parece, já nesta altura o nome de Cioran estava relativamente proliferado entre os colunistas brasileiros, vide o número cada vez maior de ensaístas a lhe citar, mesmo quando não destinavam o escrito a uma análise crítica do filósofo.
Destes primeiros anos, destacam-se o artigo de Eduardo Frieiro para o Correio da Manhã do Rio de Janeiro a 30 de Junho de 1962, “A Metafísica da Negação”, o qual merece uma investigação apropriada, além do conjunto de excertos nomeado “A Tentação de Existir”, em referência à obra de Cioran La Tentation d’Exister, sem autoria revelada, publicado também no Correio da Manhã do Rio de Janeiro a 13 de Fevereiro de 1965.
Mais do que tudo, a década de 1960 nos oferece um clímax para nossa narrativa ao servir, já no fim de sua caminhada, nos idos de 1968, como plano de fundo para o “encontro” entre um Correia de Sá e Emil Cioran. Mas, afinal, quem foi Correia de Sá, esse “desconhecido” a quem se referiu o filósofo romeno e que lhe causou tão grande impressão?
O empreendimento de descobrir informações sobre a biografia do colunista foi, sem dúvidas, o maior dentre os encargos desta presente pesquisa. A dificuldade se deveu, sobretudo, ao que, em um primeiro momento, supomos ter sido o uso de um pseudônimo. É quase nula a quantidade de registros vinculados ao nome. Buscamos, portanto, encontrar quaisquer outros ensaios e artigos que Correia de Sá pudesse ter escrito antes ou depois da análise sobre Cioran. Mesmo assim, levantamos pouquíssimo material e, em contraposição, vários obstáculos.
Entretanto, após o acúmulo de tentativas, conseguimos chegar a um artigo do ano de 1963, publicado no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, assinado por um “Corrêa de Sá”. O tema do ensaio é um livro recém-lançado à época, do escritor Marques Rebelo. A citação do referido ensaio em uma lista de referências acerca da obra de Marques Rebelo[9] se dirigia a “Correia” de Sá, ao passo que a assinatura no periódico mostrava Corrêa de Sá, sem o “i” e com o acento. Desvendamos um impasse peculiar: as duas grafias eram possíveis e se dirigiam ao mesmo autor. Mas qual seria a verdadeira?
O achado nos deu novo ânimo, ímpeto que nos direcionou até a aposta em outra hipótese: seria o nome Correia de Sá (ou Corrêa de Sá) realmente um pseudônimo, ou estaríamos lidando com outro tipo de situação? Todas as pesquisas nos apontavam para a família Corrêa de Sá e Benevides, cujos representantes descendem diretamente da nobreza de Portugal. Seria, portanto, Correia de Sá uma assinatura não usual de uma figura ilustre? Recolhemos alguns possíveis nomes até chegarmos na biografia daquele que melhor se encaixou no perfil do colunista: o médico e poeta Walter Corrêa de Sá e Benevides, mais conhecido pela comunidade literária brasileira como Walter Benevides. Nascido em 04 de setembro de 1908 no Rio de Janeiro, faleceu nesta mesma cidade em 20 de janeiro de 1981. Foi otorrinolaringologista, membro da Academia Nacional de Medicina, ensaísta, ficcionista, professor universitário, poeta e crítico literário. Era amigo pessoal de Marques Rebelo.
Contudo, até então, por mais que as informações coincidissem com os dados e o perfil do colunista Correia de Sá, Walter Benevides era apenas uma forte hipótese. Só nos contentamos para admitir a coincidência entre as identidades quando tomamos conhecimento da obra de Walter. Sua primeira publicação, Poemas Concêntricos (1936), fora assinada por ele como Corrêa de Sá. Sendo assim, a ideia do pseudônimo é automaticamente substituída pela de alternância de assinaturas, dado que ora Walter assinou como Walter Benevides, principalmente a partir da década de 1970, sendo o nome pelo qual ficou amplamente conhecido tanto entre os literatos quanto entre a comunidade médica, ora como Corrêa de Sá, rubrica pouco difundida que provavelmente só corresponde à primeira fase de suas produções.
Apesar de, a essa altura, já termos assumido a provável identidade do colunista, permanecemos inquietos. Decidimos tentar contato com algum familiar de Walter Benevides, com o intuito de confirmar a autoria dos ensaios e a coincidência entre as assinaturas. Contactando então o filho mais velho do autor, senhor Adolpho Corrêa de Sá e Benevides, conversamos sobre o nosso trabalho e o ensaio em questão[10]. Além de confirmadas as nossas expectativas – Walter Benevides escrevia e publicava com o nome Corrêa de Sá, sendo a diferença de grafia do “Correia” uma circunstância irrisória à época – descobrimos o fato notável de que Cioran e Correia de Sá se encontraram numa oportunidade em Paris. Não pudemos precisar quando a reunião ocorreu. Mesmo com a verificação, permanecem em aberto alguns pontos, tais quais: o motivo da escolha pela mudança de assinatura por Walter Benevides ou mesmo se durante o encontro com o filósofo romeno os dois chegaram a discutir sobre o ensaio crítico do brasileiro. A definição para o problema da identidade também pode ser constatada no prefácio de um livro de Walter Benevides, Rilke ou a convivência com a morte (1976), em que Francisco Inácio Peixoto, autor do texto introdutório, nos releva o seguinte:
Descendente dos Corrêa de Sá e Benevides, foi como Corrêa de Sá que publicou, em 1936, em edição de luxo limitada a 75 exemplares, mas lamentavelmente mal cuidada, seu primeiro e único livro de poesia, com ilustrações de Portinari, ele que, então, agradecia à Providência “não ter nascido poeta passadista”. Foi também como Corrêa de Sá que colaborou durante muito tempo no Boletim de Ariel e, mais embuçado ainda sob as iniciais C. S. C. de S., que manteve ali as seções de Música e de Discos Selecionados, difundindo sua mestria de musicólogo e de melômano, dando-nos indicações e roteiros percucientes das gravações que surgiam ou, simplesmente, noticiando os principais acontecimentos do mundo musical. Mais tarde, Corrêa de Sá ressuscitaria algumas vezes em artigos para o Jornal do Comércio, mas, abandonando o quase pseudônimo e já abandonada a poesia – que não pratica, entretanto nele subsiste em estado latente – é como Walter Benevides que nos vem dando agora, periodicamente, embora com censurável avareza, um pouco do muito que escreve (p.12).
O que finalmente nos interessa é, em poucas palavras, o conjunto dos três artigos publicados por Correia de Sá sobre Cioran. Notadamente, um ensaio crítico e duas traduções, sendo a segunda delas acompanhada por uma nota introdutória. Todas as publicações vinculadas ao Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, entre 1968 e 1970. O ensaio crítico “E. M. Cioran, pessimista quase perfeito” (1968) está integralmente transcrito abaixo e foi o objeto do elogio de Cioran em seu Cadernos. Depois dele, uma tradução por ano: “Do pomar maldito de Cioran” em 27 de Abril de 1969, seleção e tradução de aforismos, e “Valery por Cioran” em 04 de Julho de 1970, texto que seria prefácio de um livro sobre Paul Valéry mas que acabou sendo recusado pela editora americana responsável[11].
3. “E. M. Cioran, pessimista quase perfeito”[12], por Correia de Sá
A fúria da alfabetização que grassa cada vez mais forte pelo mundo tem suas vantagens. Assim, não fosse esse fervor aparentemente humanitário, certos autores pobres jamais gozariam o prazer de se verem em letra de fôrma. Obtida a dilatação capitalista do mercado leitor, os editores se animam, garantidos pela voracidade indiscriminada do público, a imprimir as maiores abominações, dando ensejo até às mais sórdidas manifestações reacionárias. É o que explica, e não outra coisa, o aparecimento de uma tradução ianque de Cioran, escritor que, maldito na própria Europa, nos Estados Unidos só poderia ser uma afronta. E tanto o é que a revista “Time”, apenas uma semana após ter anunciado o escândalo, já estampava cartas furibundas de protesto contra a violação do espaço otimista americano por um desclassificado que, com tais ideias, só poderia ser impostor[13].
Cioran é romeno, daquela brava terra latina desgarrada quase no Oriente, tão mal de nós conhecida que ainda hesitamos em como grafar-lhe o nome, só lembrada do comum da nossa gente graças às aventuras de um ex-rei seu, Hohenzollern de opereta, que aqui veio passear o seu adultério morganático. Da sua literatura, que já foi dominada pelo eslavônico, e fugazmente pelo grego, só algum especialista, entre nós, poderia dizer. O que desses dácios nos têm chegado são as letras do exílio, quase sempre em francês: o dadaísmo de Tristan Tzara, o cosmopolitismo de Panait Istrati, os requintes das Princesas Bibesco, as desintegrações de Ionesco, as intimidades eruditas com o sagrado de Mircea Eliade. Todos desembocaram em Paris, onde em geral se acomodaram muito bem, com exceção deste Cioran, criatura rara, que insiste na coerência de viver miseravelmente de acordo com o seu desespero particular, à custa de traduções e de resenhas ocasionais, numa exasperada solidão. Pessimista feito homem, é pois, um réprobo.
Surgido como necessidade antitética perante o culto burguês ao progresso, embora haja recebido chancela poética de Leopardi e se tenha estruturado em doutrina por Schopenhauer há bem mais de um século, o pessimismo tem sobrevivido muito precariamente. Todas as ideologias modernas lhe são adversas. Tanto para os marxistas como para os democratas e até para os fascistas (1) é tido como peçonha decadente. Na verdade, muito pouca gente tem tido coragem de se confessar pessimista. É como que uma degradação, tão suja quanto admitir uma doença pudenda ou um vício escondido. O próprio Eduard von Hartmann, apesar de discípulo confesso de Schopenhauer, não deixava de ter a sua ponta de covardia, empenhado em desculpar o rigor do seu sistema com a amenidade que reinava em seu lar, quando, caso fosse consequente, deveria, pelo contrário, proclamar com o exemplo doméstico o caráter não circunstancial da sua filosofia.
Cioran não se dá ao trabalho de fazer profissão de fé pessimista. Não que lhe falte intrepidez, mas por dispensar-se provar o evidente. Com pouco menos de sessenta anos, relativamente escassa tem sido a sua obra, publicada a partir de 1949[14], e subdividida em cinco livros compactos de pensamento e angústia, com uma riqueza de poesia nos títulos que já representa a constância de um programa: “Précis de Décomposition” (1949), “Syllogismes de L’Amertume” (1952), “La Tentation d’Exister” (1956), “Histoire et Utopie” (1960) e “La Chute dans le Temps” (1964). (2) Mas programa não quer dizer doutrina. O que há nessas páginas, não muito abundantes no todo, é o rastro de uma horrorizada descoberta, a verificação do irremediável na existência. Poeta como os maiores, injetando no francês uma tremenda selva de virilidade verbal e sintática, o que ele vê e o que ele mostra se reveste permanentemente da força da frieza e do frenesi da crueldade.
O desamparo é total. Só nos resta a vantagem da perspectiva histórica, mais ampla que a de qualquer outra época, para nos conceder um derradeiro gesto de dignidade: “caminhar para o fim da história com uma flor na lapela”[15], atitude em que a secura dos estóicos se mescla crepuscularmente à elegância de Brummel. Caíram todos os véus. Por mais que teime em não o acreditar, o homem sabe que esta sua civilização vai acabar e talvez breve. E se o sabe é por ter perdido a fé. Ninguém mais do que Cioran se ressente dessa mutilação. Nas aporias do seu ceticismo consome-se até o extremo de duvidar da própria descrença, último personagem de Dostoiévski, pois reconhece que às vezes a razão o leva a Deus, embora nunca O sinta no coração. É o drama do “humanismo ateu”[16], estudado com tanta preocupação pelo Padre de Lubac, que nessa soma de negações vê “muito mais que um ateísmo propriamente dito” “um antiteísmo”, e, mais precisamente, um “anticristianismo”[17].
Foi o caminho sem triunfo aberto por Nietzsche, que se empenhava mais em destruir Deus do que em negá-lo. O ódio de Cioran, seguidor exemplar do alemão não chega ao deicídio. Deus é para ele o inimigo necessário, o companheiro incômodo mas indispensável ao seu solipsismo: “peut-on parler honnêtement d’autre chose que de Dieu ou de soi?”[18] Além do mais, para perplexidade perene do mal que nos rodeia, convém que haja um bode expiatório. E quem melhor do que o Criador, responsável que é por todas as imperfeições que no mundo cada dia se renovam? Por isto não titubeia o nosso romeno em invocar o Demo, exortando-o a que venha roubar o seu “sol para o pendurar em outro universo”[19]. Não quer cair, pois, no engano patético do seu querido mestre que, estrategista imprudente, pretendeu acabar com Deus sem antes haver liquidado o Diabo. De fato, depois de fazer com que Zaratustra afirmasse não existir Diabo nem Inferno, Nietzsche acabou reconhecendo não só que “o Diabo é simplesmente o ócio de Deus a cada sétimo dia”[20], como, pior ainda, que nós, infames, nos tornamos seus apologistas: “wir sind die Ehrenretter des Teufels”[21].
Este é, a bem dizer, o drama central da história para aqueles que oscilam entre saber mais do que creem, e crer mais do que sabem: “Quel dommage, que, pour aller à Dieu, il faille passer par la foi!”[22], soluço não sufocado que bastaria para lhe dar livre acesso ao grupo de “Os Possessos”[23]. Iconoclasta que quebrou os seus “ídolos para sacrificar aos seus cacos”[24], era natural que só lhe restasse encarar a sociedade não como “um mal, mas como um desastre”[25]. Compreende-se então que para ele se dispa de sentido qualquer consideração sobre atividades humanas, todas secundárias e contingentes. A desgraça essencial está na “humilhação e na vergonha do ser”[26]. Tudo mais deriva dessa catástrofe primeira. É o existencialismo às avessas: “être homme n’est pas une solution, ni non plus cesser de l’être”[27]. Daí o seu desinteresse pelo suicídio, para espanto dos não iniciados na angústia: “ne se suicident que les optimistes, les optimistes que ne peuvent plus l’être. Les autres, n’ayant aucune raison de vivre, pourquoi en auraient-ils de mourir?”[28] Se os remédios individuais são ineficazes, muito menos valerão os coletivos: “il est également vain de refuser ou d’accepter l’ordre social”[29]. Nada mais lógico, portanto, do que classificar o marxismo como pecado otimista, ver na América uma “fatalidade sem substância”[30], e sentir que a Europa está gangrenada. E o supremo equívoco seria recorrer a essa “mistura de duas salivas”[31] que é o amor: “a tel point le doute travaille les êtres que, pour y remédier, ils ont inventé l’amour, pacte tacite entre deux malheureux pour se surestimer, pour se louanger sans vergogne”[32].
Por lhe faltar, como admite, “calor” no niilismo[33], é incapaz de negar tudo para conseguir a extinção das próprias dúvidas. E assim vai se adaptando à vida mercê de nefandos sortilégios. Um deles é o de “mudar de desespero como de camisa”[34]. Outro é a paixão pecaminosa pela música, tão intensa que o prende à existência por um fio de melodia. Mas o que realmente o sustenta é a convicção de estarmos no fim de um ciclo. Nem tudo foi insuportável neste hediondo planeta: “O século de Alcebíades e o século XVIII francês são duas fontes de consolo”[35], perigosa concessão, capaz de fazer brotar o veneno da esperança nas ressurreições. Nem sempre é firme o terreno da amargura. Bem o demonstra o nosso autor ao afirmar que “un pessimiste sans ivresses, un agitateur sans aigreur ne mérite que mépris”[36], momento de inconsistência no pessimismo, que se repete na sua admiração contrafeita pelos judeus, esses “maîtres à exister”[37], que “ao presente que entorpece opõem as virtudes afrodisíacas do amanhã”[38]. O pessimista integral dispensa motivações e despreza os que se seduzem com futuras melhorias.
Na dilaceração com que se despoja qualquer ilusão vital, Cioran não deixa, contudo, de contar com os seus prazeres, dois deles embriagadores: o da decadência e o da própria vilania. Tem a certeza de ser nulo, mas sem se sentir absolutamente humilde, carregando a “sua inutilidade como uma coroa”[39]. Quanto à decadência, em que se banha num gozo abjeto, quer que seja estimulada em vez de combatida, para que, pelo esgotamento, propicie o aparecimento de novas formas. Com isto não condescende a nenhuma fé no progresso, roteiro de cretinos, nem apela para nenhum quiliasmo, já que a utopia é um “paraíso dirigido”[40], onde “não há lugar para o acaso”[41]. Mas é que o impacto de uma nova barbárie talvez venha a ser divertido.
Schopenhauer sem vontade, Stirner descrente do anarquismo, Kierkegaard sem fé, Nietzsche que rompeu com o super-homem, Spengler sem sistema, este romeno que tão estupendamente escreve, que tão acirradamente detesta os intelectuais, que admira acima de todos Diógenes, porque o cínico “nada propunha”[42] tem o orgulho de não oferecer nenhuma mensagem. Espelho deste nosso presente deprimido, compilações suntuosas de nossas negações latentes e ostensivas, o que redime a obra de Cioran, o que de certo lhe dará permanência, é a força do estilo que em todas as suas páginas transparece. Evangelho do caos, poderia ser adotado pela convulsa mocidade que agora se agita sem diretrizes, se acaso aos jovens de hoje restasse algum faro de beleza. Seria a salvação pela estética. Mas quererá alguém salvar-se?
Notas:
(1) A edição de 1938 de “Knaurs Lexikon” de intensa impregnação nazista[43], assim se refere àquele com suas ideias, segundo muito contribuiu bastante, ainda que involuntariamente, para a implantação do regime então dominante: “Spengler Oswald (1880-1936) pessimista. Filósofo de cultura: Decadência do Ocidente; Prussianismo e Socialismo; Anos decisivos” – Com que desdém, dir-se-ia, quase, com que nojo o qualificativo “pessimista” é encaixado nesta nota tão sucinta!
(2) Edições Gallimard.
4. Referências bibliográficas
Obras de Cioran: